Opiniões e perspectivas

O peso do passado no futuro do trabalho: a transmissão intergeracional de letramento

Montagem com homem de perfil tocando com sua palma da mão uma imagem computadorizada representativa de um ser humano. Fotomontagem: Pablo Quezada
Publicado: 04/03/2020
Luis Claudio Kubota

Este artigo é uma versão resumida de nota técnica do Ipea publicada originalmente neste endereço. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou do Ministério da Economia.
Esta pesquisa foi possível devido ao Acordo de Cooperação entre o Ipea e o Instituto Paulo Montenegro.

 

Nos últimos anos, é possível observar um crescente interesse de acadêmicos, jornalistas e membros do governo, das empresas e da população em geral em torno da possibilidade de substituição de postos de trabalho em virtude da automação, potencializada por tecnologias como a inteligência artificial. Neste trabalho, essa temática é analisada do ponto de vista da qualificação da oferta de mão de obra, por meio de dados da pesquisa Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf) 2018.

Processos de transformação produtiva observados em países do Ocidente – e, mais recentemente, na China – caracterizaram-se pela migração de população do campo, onde a produtividade do trabalho é mais baixa, para a manufatura, onde é mais elevada. O processo de transformação que se vislumbra é diferente em alguns aspectos importantes: há um aumento na demanda de habilidades cognitivas, de processamento de informação e de comunicação interpessoal. Para avaliar as competências dos trabalhadores dos países-membros, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desenvolveu o estudo de competências de adultos – Programme for the International Assessment of Adult Competencies (PIAAC). Os resultados indicam que, nos países pesquisados, entre 4,9% e 27,7% dos adultos são proficientes apenas nos níveis mais baixos de letramento (OCDE, 2014).

A familiaridade com as tecnologias da informação e comunicação (TICs) é tão importante que a OCDE mensurou a capacidade de solução em ambientes altamente tecnológicos. (OCDE, 2014). A consultoria McKinsey, por sua vez, indica que os trabalhadores deverão atuar cada vez mais com máquinas como parte de suas atividades diárias (MGI, 2017).

O Brasil não participa do PIAAC, todavia, a Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro desenvolvem o Inaf, que será detalhado na seção seguinte. Ele é a fonte dos dados utilizados neste texto, que buscará avaliar as competências cognitivas dos trabalhadores brasileiros no que diz respeito ao letramento/numeramento e à familiaridade com as TICs.

Análise dos dados

Defende-se aqui a tese de que, ao olhar para o futuro, é preciso compreender alguns aspectos da evolução do letramento da população brasileira ao longo do tempo. Durante um período considerável de nossa história, a educação formal foi privilégio de uma parcela reduzida da população. Isso se refletiu nas elevadas taxas de analfabetismo das pessoas com 15 anos ou mais, que chegava a um terço da população em 1970, e mais de um quarto, em 1980, conforme pode ser observado na Tabela 1.

 

Tabela 1 – Brasil: analfabetismo na faixa de 15 anos ou mais (1900-2000)

Ano

População total
(mil)

Analfabetos
(mil)

Taxa de analfabetismo
(%)

1900 9.728 6.348 65,3
1920 17.564 11.409 65,0
1940 23.648 13.269 56,1
1950 30.188 15.272 50,6
1960 40.233 15.964 39,7
1970 53.633 18.100 33,7
1980 74.600 19.356 25,9
1991 94.981 18.682 19,7
2000 119.533 16.295 13,6


Fonte
 Inep (2003).

 

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) indicam que a taxa de analfabetismo para maiores de 15 anos era de 7,2% em 2016; 6,9% em 2017 e 6,8% em 2018 [1]. Segundo os critérios do IBGE, para ser considerado alfabetizado basta ser capaz de ler e escrever um bilhete simples [2]. Logo, a taxa de alfabetização é um indicador inadequado para apreender as competências necessárias para as complexidades do atual mercado de trabalho, principalmente quando se considera as demandas cognitivas exigidas na onda de inovações que tem varrido o mundo neste começo de século XXI.

O Inaf para a população entre 15 a 64 anos vem sendo desenvolvido desde 2001 por meio de uma parceria entre a ONG Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro. Houve edições da pesquisa de 2001 a 2005 e depois em 2007, 2009, 2011, 2015 e 2018. Essa última foi realizada pelo IBOPE Inteligência (Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro, 2018). Os entrevistados são classificados em cinco níveis de proficiência: analfabeto, rudimentar, elementar, intermediário e proficiente. Aqueles classificados nos dois primeiros níveis são considerados analfabetos funcionais; os demais, funcionalmente alfabetizados.

A Tabela 2 mostra a evolução dos níveis de alfabetismo no Brasil, tendo como base o Inaf.

 

Tabela 2 – Brasil: níveis de alfabetismo (2001-2018)
(Em %)

2001/
2002

2002/
2003

2003/
2004

2004/
2005

2007 2009 2011 2015 2018
BASE 2.000 2.000 2.001 2.002 2.002 2.002 2.002 2.002 2.002
Analfabeto 12 13 12 11 9 7 6 4 8
Rudimentar 27 26 26 26 25 20 21 23 22
Elementar 28 29 30 31 32 35 37 42 34
Intermediário 20 21 21 21 21 27 25 23 25
Proficiente 12 12 12 12 13 11 11 8 12
Analfabetos
funcionais
39 39 37 37 34 27 27 27 29
Funcionalmente alfabetizados 61 61 63 63 66 73 73 73 71


Fonte
 Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro (2018).

 

Percebe-se uma evolução no período de 2001 a 2009 e, desde então, a porcentagem de funcionalmente alfabetizados encontra-se estável. A porcentagem de analfabetos funcionais era de 29% em 2018, e dos que se encontravam no nível de alfabetismo elementar de 34%.

Como seria de se esperar, quanto maior a escolaridade, menor a porcentagem de analfabetos funcionais, conforme pode ser observado na Tabela 3. Todavia, entre os que têm nível superior, 4% são analfabetos funcionais e um quarto tem nível elementar de alfabetismo.

 

Tabela 3 – Distribuição da população pesquisada por níveis de alfabetismo e escolaridade (2018)
(Em %)

Nível Total Nenhuma Ensino Fundamental Anos Iniciais Ensino Fundamental Anos Finais Ensino Médio Educação Superior
BASE 2.002 116 297 451 796 342
Analfabeto 8 82 16 1 1 0
Rudimentar 22 17 54 32 12 4
Elementar 34 0 21 45 42 25
Intermediário 25 1 7 17 33 37
Proficiente 12 0 1 4 12 34
Analfabetos funcionais 29 99 70 34 13 4
Funcionalmente alfabetizados 71 1 29 66 87 96


Fonte
 Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro (2018).

 

Na Tabela 4, aparece uma melhora significativa no letramento das gerações mais jovens no Brasil. Mais da metade da população entre 50 a 64 anos é analfabeta funcional, ao passo em que apenas 12% dos jovens entre 15 a 24 anos se encontram nessa situação.

 

Tabela 4 – Distribuição da população pesquisada por níveis de alfabetismo e faixas etárias (2018)
(Em %)

Nível Total 15 a 24 anos 25 a 34 anos 35 a 49 anos 50 a 64 anos
BASE 2.002 475 451 615 461
Analfabeto 8 1 2 8 20
Rudimentar 22 11 16 25 34
Elementar 34 37 36 36 27
Intermediário 25 35 30 20 15
Proficiente 12 16 15 11 5
Analfabetos funcionais 29 12 18 33 53
Funcionalmente alfabetizados 71 88 82 67 47


Fonte
 Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro (2018).

 

Na Tabela 5, observa-se que o alfabetismo tem uma forte correlação com o uso das TICs, que são fundamentais para o mercado de trabalho atual e serão cada vez mais importantes no futuro.

 

Tabela 5 – Uso das TICs por nível de alfabetismo (2018)
(Em %)

Uso das TICs Analfabeto Rudimentar Elementar Intermediário Proficiente Total
Não usa/ pouco uso 97 64 26 11 4 33
Mediano 3 26 41 35 28 32
Intenso 0 11 33 54 68 35


Fonte
 Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro (2018).

 

A Tabela 6 revela uma forte correlação entre a escolaridade da mãe e o alfabetismo do filho. Tomando-se os indivíduos cujas mães não têm nenhuma escolaridade, quase 60% são analfabetos funcionais. Apenas 14% deles estão nas categorias intermediário ou proficiente. Tomando-se o extremo oposto, dos indivíduos cujas mães têm Ensino Superior completo ou incompleto, mais de 70% estão nas categorias intermediário ou proficiente.

 

Tabela 6 – Escolaridade da mãe e alfabetismo (2018)
(Em %)

Escolaridade da mãe Analfabeto Rudimentar Elementar Intermediário Proficiente
Nenhuma (n=419) 20,8 38,2 26,7 11,2 3,1
Menos de 4ª série (n=344) 3,5 22,1 41,3 24,4 8,7
Fundamental incompleto: até 7ª série (n=362) 1,7 15,7 38,4 33,4 10,8
Fundamental completo/Médio incompleto (n=248) 1,2 8,9 39,1 33,9 16,9
Médio completo (n=287) 0 7,3 38,3 32,8 21,6
Superior completo ou incompleto (n=121) 0 7,4 20,7 36,4 35,5
Outros (1) 21,3 39,8 28,5 9,5 0,9


Fonte
 Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro (2018) – elaboração do autor.
Nota (1) Não teve mãe ou responsável do sexo feminino, não sabe ou não respondeu.

 

Aprofundando o resultado anterior, é possível observar, na Tabela 7, que quanto maior a escolaridade da mãe, maiores as chances de os indivíduos entre 15 e 24 anos estarem estudando. Essa correlação entre as duas variáveis deve ser analisada com cautela, tendo em vista que, como visto na Tabela 4, existe também uma correlação entre idade e alfabetismo funcional.

 

Tabela 7 – Escolaridade da mãe e situação em relação a estudo – indivíduos de 15 a 24 anos (2018)
(Em %)

Escolaridade da mãe Estuda Não estuda
Nenhuma (n=23) 17,4 82,6
Menos de 4a série (n=55) 58,2 41,8
Fundamental incompleto: até 7a série (n=105) 49,5 50,5
Fundamental completo/Médio incompleto (n=81) 45,7 54,3
Médio completo (n=121) 57,0 43,0
Superior completo ou incompleto
(n=55)
81,8 18,2
Outros (1) (n=34) 44,1 55,9
Total (n=474) 53,6 46,4


Fonte
 Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro (2018) – elaboração do autor.
Nota (1) Não teve mãe ou responsável do sexo feminino, não sabe ou não respondeu.

 

Os indivíduos cujas mães não têm nenhuma escolaridade também apresentam maior dificuldade de lidar com interfaces digitais: a Tabela 8 mostra que metade deles realiza depósitos ou saques em caixas eletrônicos com dificuldade ou não consegue realizá-los. No caso das pessoas cujas mães têm Ensino Superior completo ou incompleto, apenas 15% deles têm dificuldade ou não conseguem utilizar o equipamento para realizar depósitos ou saques [3].

 

Tabela 8 – Escolaridade da mãe e grau de dificuldade em realizar depósitos ou saques em caixas eletrônicos (2018)
(Em %)

Escolaridade da mãe Faz sem dificuldade Faz com dificuldade Não consegue fazer Não precisa fazer Não sabe Não respondeu
Nenhuma (n=419) 38,7 25,5 24,8 9,1 1,4 0,5
Menos de 4ª série (n=344) 67,7 17,4 8,4 5,5 0,3 0,6
Fundamental incompleto: até 7ª série (n=362) 76,5 11,6 5,5 6,1 0,3 0,0
Fundamental completo/médio incompleto (n=248) 80,6 12,1 3,6 2,8 0,4 0,4
Médio completo (n=121) 80,1 10,5 3,1 6,3 0 0
Superior completo ou incompleto (n=121) 78,5 13,2 2,5 5,0 0 0,8
Outros (1) (n=221) 41,6 18,6 24,0 12,7 3,2 0
Total (n=2.002) 64,4 16,3 11,3 6,9 0,8 0,3


Fonte:
Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro (2018) – elaboração do autor.
Nota (1) Não teve mãe ou responsável do sexo feminino, não sabe ou não respondeu.

 

Finalmente, considerando a situação laboral dos indivíduos de 25 a 64 anos, a tabela 9 mostra que quase metade daqueles cujas mães não têm nenhuma escolaridade não exercem trabalho remunerado, ao passo que 79% daqueles cujas mães têm Ensino Superior completo ou incompleto estão trabalhando. As porcentagens de donas de casa são maiores quanto menor a escolaridade da mãe.

 

Tabela 9 – Escolaridade da mãe e situação atual de trabalho – indivíduos de 25 a 64 anos
(Em %)

Escolaridade da mãe Está trabalhando Está desempregado Está aposentado É dona de casa Outra situação (2) Está procurando emprego pela primeira vez Nunca trabalhou e não está procurando emprego
Nenhuma (n=396) 53,0 17,2 8,8 14,4 4,8 0,5 1,3
Menos de 4ª série (n=288) 65,3 13,9 5,6 12,5 2,4 0,3 0,0
Fundamental incompleto: até 7ª série (n=257) 61,1 20,6 5,1 7,8 4,7 0,0 0,8
Fundamental completo/ Médio incompleto (n=167) 71,3 16,8 3,6 6,6 1,2 0,6 0,0
Médio completo (n=166) 67,5 21,1 1,2 6,0 2,4 0,6 1,2
Superior completo ou incompleto (n=66) 78,8 13,6 3,0 1,5 0,0 0,0 3,0
Outros (1) (n=187) 51,3 19,8 7,0 15,5 3,2 0,5 2,7
Total (n=1.527) 61,2 17,7 5,7 10,7 3,3 0,4 1,0


Fonte:
Ação Educativa e Instituto Paulo Montenegro (2018) – elaboração do autor.
Notas
(1)
Não teve mãe ou responsável do sexo feminino, não sabe ou não respondeu.
(2) Vive de renda, recebe pensão, inválido etc.

 

O impacto social do analfabetismo funcional

O analfabetismo funcional é um fenômeno que ocorre também em países desenvolvidos. A World Literacy Foundation estima que o custo do analfabetismo funcional para a Grã-Bretanha seja de £ 80 bilhões, sendo £ 24,8 bilhões em programas de desemprego e assistência social e £ 55,2 bilhões devido às perdas de renda pessoal, produtividade e receitas empresariais (World Literacy Foundation, 2018).

O impacto social do analfabetismo funcional envolve piores indicadores de saúde e maiores dependência da assistência social e prevalência de envolvimento com crime e baixa autoestima. Indivíduos com menores níveis de letramento tendem a ter salários mais baixos e menor acesso a serviços básicos, educação continuada e capacitação profissional (OCDE, 2014). Com isso, a falta de conhecimentos financeiros sobre empréstimos pode levar as pessoas a tomar decisões sem pleno entendimento dos impactos [4] que elas causarão (World Literacy Foundation, 2018).

Do ponto de vista das políticas públicas, deve haver preocupação especial com as baixas proficiências de letramento e numeramento entre trabalhadores em ocupações menos sofisticadas, uma vez que essa deficiência pode dificultar a introdução de inovações necessárias ao aumento da produtividade. Adultos com pouca qualificação têm menor probabilidade de se beneficiarem de programas de educação para adultos, tendo suas competências deterioradas com o tempo, dificultando ainda mais sua participação no mercado de trabalho (OCDE, 2014).

Pais com baixo letramento tendem a ter menores expectativas escolares para os filhos. O trabalho costuma ser priorizado em relação à educação, e os filhos tendem a reproduzir o mau desempenho escolar dos pais (World Literacy Foundation, 2018). Foi exatamente esse o resultado encontrado neste artigo, baseado em dados do Inaf. O Brasil está ao lado de países como Inglaterra, Alemanha, Itália, Polônia e Estados Unidos, nos quais a origem social tem impacto significativo sobre as competências em letramento. Existem outros países, como Japão, Austrália, Holanda, Noruega e Suécia que apresentam desempenho em letramento acima da média mas com elevado nível de equidade (OCDE, 2014).

Ressalvando as diferentes metodologias e públicos, é possível concluir, com base nas tabelas 1 e 2, que, em 1970, cerca de um terço da população era analfabeta, ao passo que, em 2018, quase um terço da população era analfabeta funcional. Ou seja, por um lado, houve um avanço considerável; por outro, o número de indivíduos com baixas competências básicas para o mercado de trabalho ainda é extremamente elevado.

A tabela 3 mostra que um quarto dos indivíduos com nível superior tem nível elementar de letramento, concluindo-se que alta escolaridade não é sinônimo de alta proficiência. Visto de outra forma: o baixo nível de competências básicas de parte da mão de obra significa uma oportunidade em termos de automação de tarefas.

Com as tabelas 3 e 4, percebe-se que o aumento no acesso à educação formal resultou em uma redução significativa no alfabetismo funcional no Brasil. Trata-se de um aspecto muito positivo, mas é interessante ressaltar que a elevada taxa de desemprego entre os jovens impede que parte deles adquira outras competências valorizadas no mercado de trabalho. Além disso, até em função da reforma previdenciária, os mais velhos serão obrigados a trabalhar por mais tempo.

Os dados da Coreia do Sul no PIAAC mostram que existe uma diferença significativa entre o desempenho dos mais jovens, que estão entre os melhores do mundo, e dos mais velhos, que têm baixos níveis de proficiência. Isso ilustra que existem experiências históricas de transformações profundas na qualidade de um sistema educacional, em um prazo relativamente curto (OCDE, 2014).

Os dados da Tabela 5 mostram que o letramento tem forte correlação com o uso das TICs, fundamentais para o mundo do trabalho que se vislumbra. Mutirões de emprego no comércio em São Paulo costumam atrair a atenção da imprensa, com histórias comoventes de milhares de candidatos que enfrentam a fila, alguns dos quais pernoitando no local. Um programa televisivo dominical [5], baseando-se em pesquisa do Ipea e entrevistando candidatos e recrutadores de um desses mutirões, mostra que:

  • apenas 60% das vagas são preenchidas;
  • parte dos candidatos não preenche seu cadastro no site dos ofertantes; e
  • dos candidatos que cumpriram o item anterior, parte é reprovada em provas simples de Língua Portuguesa e Matemática.

Em outras palavras, mesmo vagas de ocupações de baixa remuneração ficam desocupadas por falta de qualificação mínima dos candidatos não só nas disciplinas escolares citadas mas também no uso das TICs.

Os dados apresentados nas tabelas 6 e 8 ilustram que boa parte dos indivíduos cujas mães não tiveram escolaridade formal apresentam deficiências de letramento e também de habilidades no manuseio de tecnologias. Já os da Tabela 9 mostram que, no cenário atual, mesmo sem qualquer processo massivo de automação, quanto menor a escolaridade da mãe, menor a probabilidade de os indivíduos de 25 a 64 anos exercerem trabalho remunerado.

Minimizar esse problema envolve uma questão de fluxo e outra de estoque. No que diz respeito ao primeiro, existe uma longa tradição na economia – desenvolvida por pesquisadores como Heckman (2013) e Cunha (2019) – que privilegia o investimento na primeira infância – posição corroborada pelos resultados deste estudo. Dados do Censo Escolar 2018 revelam que o atendimento escolar na faixa de 4 e 5 anos é de 91,7%, e na faixa de 3 anos, é de apenas 32,7%, o que representa um grande potencial de ampliação [6]. É claro que a qualidade dessa Educação Infantil é fundamental [7].

A melhoria da qualidade da educação é um outro capítulo, envolvendo iniciativas como alfabetização na idade certa, realfabetização de crianças mais velhas [8], programas para reduzir a evasão escolar e ensino em tempo integral, que possuem objetivos previstos tanto no Plano Nacional de Educação quanto nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

No que diz respeito ao estoque, “os países precisam definir a questão mais difícil, que é quem financia, como financia e quando financia, principalmente no que se refere a programas de aprendizado para pessoas que já saíram da escola”, como prevê a OCDE (2014), que recomendou:

  • desenvolver pontes entre o mundo do aprendizado e o mundo do trabalho;
  • oferecer capacitações e treinamento aos trabalhadores;
  • tornar o treinamento relevante;
  • permitir que os trabalhadores adaptem o aprendizado a suas vidas;
  • identificar pessoas com maior risco de apresentar baixa proficiência nas suas competências;
  • mostrar como adultos podem se beneficiar de competências aprimoradas;
  • facilitar o acesso a informações sobre programas de educação de adultos; e
  • reconhecer e certificar a proficiência nas competências (OCDE, 2014).

Existem várias medidas desenvolvidas por diferentes ministérios no intuito de melhorar a qualificação, a intermediação e a oferta de emprego, tais como a reformulação do Sistema Nacional de Emprego, vouchers para qualificação, contratos de impacto social, Espaço 4.0 etc. [9] Todavia, houve um consenso de que é necessário melhorar a comunicação e a integração entre os diversos órgãos envolvidos.

Considerações finais

Este trabalho ajuda a quantificar uma das razões para a elevada desigualdade brasileira – a educacional – que alimenta a desigualdade de renda. Filhos de mães com baixa escolaridade apresentam maiores chances de terem dificuldades no uso das TICs, competência cada vez mais relevante no mercado de trabalho, e poucos deles conseguem obter altos níveis de letramento. Forma-se um ciclo vicioso, no qual o baixo letramento resulta em menores oportunidades de participação tanto no mercado de trabalho quanto em qualificação em programas para adultos, menor remuneração, piores indicadores de saúde e maior dependência de programas de assistência social. Além do custo social, o elevado contingente de pessoas com baixo letramento representa um elevado custo financeiro para a sociedade.

Segundo o Inaf, a porcentagem de analfabetos funcionais era de 29% em 2018 e, dos que se encontravam no nível de alfabetismo elementar, era de 34%. Entre os que têm nível superior, 4% são analfabetos funcionais e um quarto tem nível elementar de alfabetismo. Essa baixa qualificação de parcela significativa da população ajuda a explicar a situação de altas taxas de desemprego e subemprego que se enfrenta no momento.

Em um cenário futuro, no qual se vislumbra a automatização de tarefas, com o aumento da demanda por habilidades de processamento de informações e cognitivas de ordem mais elevada, trata-se de valores ainda mais preocupantes. Para atuar na causa do problema, é interessante focalizar nas famílias mais vulneráveis [10] com estímulos – tais como a ampliação da Educação Infantil e da Educação Integral – para que as crianças possam entrar e permanecer no mundo escolar com menos defasagens em relação àquelas que vêm de ambientes familiares com melhor nível cultural, considerando-se o que ocorre hoje e ocorreu historicamente no Brasil.

Sobre o autor

Luis Claudio Kobota é técnico de planejamento e pesquisa na Diretoria de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação e Infraestrutura (Diset) do Ipea. O autor agradece o apoio de Bernardo Figueiredo Silva (Ipea) na concretização do Acordo de Cooperação, e os comentários e sugestões de André Rauen e Milko Matijascic (Ipea), e Ana Lucia Lima (Instituto Paulo Montenegro)

Referências

AÇÃO EDUCATIVA; INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. INAF Brasil 2018: resultados preliminares. São Paulo: Ação Educativa; Instituto Paulo Montenegro, 2018.

CUNHA, F. Primeira infância e o caminho da prosperidade. Folha de S. Paulo, 7 out. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/10/primeira-infancia-e-o-caminho-da-prosperidade.shtml.

HECKMAN, J. James Heckman muda a equação para a prosperidade americana. [s.l.]: Heckman Equation, 2013. Disponível em: https://heckmanequation.org/www/assets/2017/01/D_Heckman_FMCSVbrochure_012215.pdf.

INEP ­– INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Mapa do analfabetismo no Brasil. Brasília: Inep, 2003.

IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. A economia digital e o futuro do trabalho no Brasil. In: ______. Desafios da nação. Brasília: Ipea, 2018. v. 2.

MGI – MCKINSEY GLOBAL INSTITUTE. A future that works: automation, employment, and productivity. [s.l.]: McKinsey & Company, 2017.

OCDE ­– ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Perspectiva de competências OCDE 2013: primeiros resultados do estudo de competências de adultos. São Paulo: Fundação Santillana, 2014.

WORLD LITERACY FOUNDATION. The economic and social cost of illiteracy: a white paper by the World Literacy Foundation. Oxford: World Literacy Foundation, 2018.

 

[1] Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101657_informativo.pdf>.

[2] Disponível em: <https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/pdfs/definicoes_sociais.pdf>.

[3] É interessante a ressalva de que o resultado pode ser afetado por fatores como deficiência visual e/ou motora.

[4] Segundo pesquisa, de cada três adultos brasileiros, dois são analfabetos financeiros. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/por-que-economes-em-bom-portugues/2019/10/analfabetismo-financeiro.shtml.

[5] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/7501665/.

[6] Disponível em: http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/dados-do-censo-escolar-numero-de-matriculas-na-educacao-infantil-cresceu-11-1-de-2014-a-2018/21206.

[7] Vide https://veja.abril.com.br/blog/educacao-em-evidencia/1a-infancia-creches-e-pre-escolas-o-que-dizem-as-evidencias/.

[8] Vide a experiência do Rio de Janeiro em https://youtu.be/6iNekijEAH0.

[9] Essas medidas foram discutidas no seminário Preparando a Juventude para a Retomada do Crescimento, em 26 de setembro de 2019.

[10] O Programa Criança Feliz e a Iniciativa Petrobras para a Primeira Infância são bem focados nesse público.

 

Foto: Pablo Quezada

Conheça o Inaf

O Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) é um estudo de alcance nacional, realizado desde 2001, que estima os níveis de alfabetismo funcional da população e investiga seus determinantes. Parceria entre o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa, a iniciativa é coordenada pela Conhecimento Social. O levantamento é feito por meio de entrevista pessoal e teste cognitivo aplicado a uma amostra representativa da demografia e da diversidade socioeconômica e geográfica da população brasileira que está entre 15 a 64 anos.

De acordo com o Inaf, o indivíduo é funcionalmente alfabetizado quando apresenta um determinado grau de proficiência em letramento e numeramento. O letramento é a habilidade de ler e escrever diferentes gêneros, em diferentes suportes e formatos, com coerência e compreensão crítica. O numeramento é a habilidade de construir raciocínios e aplicar conceitos numéricos simples, ou seja, usar a matemática para atender às demandas do cotidiano. É por meio dessas capacidades que o indivíduo terá plenas condições de participar ativamente da sociedade em seus mais diversos âmbitos.

Os resultados do Inaf localizam a população pesquisada em cinco níveis de alfabetismo. Nos dois primeiros – analfabeto e rudimentar – agrupam-se os chamados analfabetos funcionais. Nos três níveis seguintes – elementar, intermediário e proficiente – concentram-se os indivíduos considerados alfabetizados funcionalmente.

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