Opiniões e perspectivas

Alfabetização matemática, alfabetismo matemático e numeramento no Inaf

Cartas de baralho dispostas aleatoriamente Domínio público
Publicado: 04/03/2020
Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca

Numa sociedade grafocêntrica como a nossa – em que as práticas socialmente valorizadas estão fortemente marcadas pela mediação de registros escritos – não é surpreendente a preocupação de diferentes agentes em conhecer as condições da população para lidar com a diversidade de textos que circulam em variadas instâncias da vida social.

Com efeito, até mesmo em processos que não fazem uso da tecnologia da escrita, é possível identificar um conjunto de textos que os subsidiam, influenciando critérios, métodos, modos de descrevê-los, apreciá-los, aprová-los, rejeitá-los ou transformá-los.

O Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) se insere, nesse contexto, como um modo de dar a conhecer – à população, a governantes, a grupos e órgãos proponentes de políticas públicas, à comunidade escolar e às demais pessoas e instituições interessadas – um conjunto de indicações não só sobre o perfil de habilidades de leitura e escrita de jovens e adultos que vivem no Brasil, mas também sobre possíveis fatores que condicionam, potencializam ou inibem o domínio e o alcance delas.

Cabe esclarecer a opção pelo termo “alfabetismo” na expressão “alfabetismo funcional” que compõe o nome do indicador. No meio educacional, diferentes termos – como alfabetização, alfabetismo e letramento – têm sido mobilizados para designar práticas de leitura e escrita e processos de sua apropriação por estudantes (crianças, adolescentes, jovens, pessoas adultas ou idosas). Essa diversidade de termos não é questão de modismo: ela atende à necessidade de explicitação de aspectos relacionados à apropriação de práticas letradas, que se torna mais relevante à medida que tais práticas se mostram mais complexas e decisivas na vida social.

De fato, não é difícil perceber que escrita e leitura sempre envolvem, além de questões técnicas e cognitivas, dimensões sociais, culturais, tecnológicas e políticas mais amplas, que não se restringem à apreensão de um conjunto de padrões e normas de um sistema que transforma sinais escritos em sons e sons em palavras às quais se atribuirão certos significados.

Nesse sentido, torna-se necessário explicitar essas dimensões para melhor compreensão da complexidade e da relevância social das relações que pessoas e grupos estabelecem com os textos com os quais se defrontam ou aos quais querem ter acesso. Essa compreensão é fundamental para a elaboração, a proposição, o desenvolvimento e o acompanhamento de alternativas pedagógicas para a promoção e a democratização dos processos de apropriação de práticas diversas de leitura e de escrita pelos diferentes grupos populacionais brasileiros.

Considerando esse contexto, o discurso pedagógico passou a reservar o termo alfabetização para focalizar, num sentido mais estrito, os processos de apropriação do sistema de escrita alfabético, em geral de um ponto de vista mais técnico. O objetivo é fazer com que as/os educadoras/os conheçam em profundidade tais processos, seus meandros e desafios e as alternativas que contribuem para que essa apropriação se efetive.

O termo letramento, por sua vez, passou a ser usado quando se pretende caracterizar a leitura e a escrita como práticas sociais, definidas por processos de apropriação não apenas de um código ou de um sistema, mas de uma cultura escrita.

Muitos estudos consideram letramento e alfabetismo sinônimos (SOARES, 2006), mas há também aqueles que os distinguem, usando alfabetismo para destacar a dimensão social das habilidades de leitura e de escrita, que requerem, além do conhecimento do funcionamento do sistema de escrita, outros saberes sociais do uso da língua, dos contextos de produção e das intencionalidades dos textos, dos gêneros textuais e dos recursos retóricos. Esses estudos preferem falar em alfabetismo quando focalizam um conjunto de habilidades complexas de leitura e de escrita de um indivíduo, em situações de uso social (RIBEIRO, 1998; ROJO, 2009), e reservam o termo letramento para se referir ao fenômeno social mais amplo, que remete à constituição de culturas de uso da leitura e da escrita instituídas nas práticas vivenciadas por grupos sociais.

A distinção desses três termos nos ajuda, assim, a prestar atenção nos delicados processos que envolvem o aprendizado de elementos, padrões, regras e procedimentos que configuram o sistema de escrita (alfabetização), no conjunto de habilidades complexas necessárias para ler e escrever adequadamente nas diversas situações de uso de diferentes textos (alfabetismo) e, ainda, na dimensão e relevância social das práticas de leitura e de escrita numa sociedade grafocêntrica (letramento).

Pois bem: o Inaf utiliza um teste de simulação de situações de uso social da leitura e da escrita. Muitas dessas situações demandam diferentes níveis de domínio do sistema alfabético. Grandes dificuldades para responder a itens que requerem habilidades mais elementares vão sugerir que o entrevistado não está alfabetizado. Mas não é essa dimensão técnica – apesar de sua relevância – o principal foco do Inaf. Simulando situações de uso social de textos de circulação frequente em diversas situações da vida social vivenciadas por grande parte da população brasileira (especialmente da população urbana), o Inaf se volta para o domínio de habilidades complexas que dão suporte à compreensão das intenções comunicativas desses textos por quem os lê e, para quem os escreve, ao uso eficiente de recursos da língua escrita para que eles cumpram o que deles se pretende.

O Inaf, claro, não cobre a vastidão de situações de uso de textos. Ele elege certas práticas de leitura, julgando ser aquelas das quais as pessoas precisam (saber) participar para funcionar na sociedade e para que a sociedade funcione. Há um caráter ideológico inevitável nessa seleção, e aqueles que usufruem de seus resultados devem considerá-lo para elaborar análises, de modo a evitar a tentação de tomá-los como absolutos – o que seria um equívoco e mesmo uma deturpação da intenção de um indicador que fornece tantas informações para que, confrontadas, propiciem a relativização de seus resultados e a elaboração e o uso responsáveis de suas indicações.

Nessa perspectiva, cabe observar que a vida social das comunidades urbanas e rurais vem progressivamente mobilizando mais informação escrita, veiculada em diferentes gêneros textuais e por diversas mídias: jornais, revistas, livros, gibis, sites, blogs e perfis pessoais nas redes sociais; documentos pessoais, leis, contratos, registros, formulários impressos e eletrônicos, relatórios, autorizações, diplomas, certificados e comprovantes; prontuários médicos e resultados de exames de laboratório, receitas, bulas e rótulos de remédios e cosméticos, cartões de vacinação, fichas de encaminhamento e senhas para atendimento em serviços de saúde; folhetos, cartazes e out-doors de propaganda, embalagens, manuais de instrução e rótulos de produtos, créditos e legendas de filmes e de outras manifestações artísticas; cartão de banco, caixa eletrônico, cheques, cédulas e moedas; cartas, cartões, bilhetes, telegramas, e-mails, mensagens de texto no celular; calendários, agendas, cronogramas, tabelas e placares de eventos esportivos; anotações pessoais, diários etc.

A esses itens pode-se acrescentar tantos outros cada vez que se volta para diferentes setores da vida social ou para variadas formas de participação em múltiplas atividades. Embora nem todas as pessoas lidem diretamente com todos esses suportes e textos, de alguma forma eles estão presentes nas atividades que todos participam e interferem no modo como as pessoas organizam a vida e suas relações com os outros e com o mundo.

Todavia, quando nos detemos a identificar as habilidades demandadas para a leitura ou a produção desses textos, vamos nos dando conta de como representações, referências e argumentos que aparecem nesses textos ou que os estruturam estão frequentemente associados a ideias, símbolos e critérios relacionados ao que aprendemos a chamar de “Matemática” no contexto escolar. Não que a leitura ou a escrita desses textos nos levem necessariamente a resolver problemas tais como os das tarefas escolares, mas as práticas de leitura e escrita que eles sugerem e demandam nos obrigam, quase sempre, a lidar com quantidades, medidas e comparações ou com ordenações e classificações ou com reconhecimento e organização de formas ou com localização no espaço e suas representações ou, por fim, com diferentes combinações dessas ideias tipicamente matemáticas (ver FONSECA, 2017).

Isso não é surpreendente. Os textos refletem o jeito como quem os escreve se relaciona com o mundo. Especialmente em sociedades capitalistas, o modo de escrever é decisivamente marcado por processos, recursos, representações e critérios que se relacionam ao que chamamos de “matemática”.

A forte marca da relação com o mundo que caracteriza nossa sociedade permite dizer que ela é não apenas grafocêntrica mas também quanticrata, ou seja, somos uma sociedade na qual argumentos quantitativos (métricos, geométricos, classificatórios, de ordenação etc.) respaldam ou mesmo definem decisões, possibilidades e interdições. A produção e a leitura de textos também são marcadas por esses argumentos. Assim, compreendê-los e entender como eles são ou podem ser veiculados nos textos é fundamental para uma leitura e escrita proficientes.

Sendo o Inaf um indicador de alfabetismo funcional, ele não poderia, portanto, desconsiderar a relevância das habilidades de identificar e compreender ideias, representações e procedimentos matemáticos – e como lidar com eles – para a leitura e a escrita dos diversos textos de destacada utilização na vida social.

Por isso, na concepção de seus instrumentos e na produção e divulgação de seus resultados, o Inaf não se furtou a contemplar:

– a avaliação de habilidades elementares para o domínio de diferentes sistemas de representação matemáticos (expressão de horários e de medidas de intervalos de tempo; registros de preços e outros registros de quantias em dinheiro; expressão de medidas de comprimento, área, massa e capacidade; ordenações classificações e descrições de evolução de fenômenos em registros diversos como tabelas, gráficos, diagramas; representações gráficas de formas e de espaços, etc.) – o que poderíamos chamar de alfabetização matemática;

– a avaliação de habilidades complexas – essas, ainda mais importantes ­– que envolvem conhecimentos sociais sobre a intenção e as situações de uso dessas representações e de ideias e procedimentos a elas associados, na leitura e na escrita eficiente de textos em variados contextos – o que poderíamos chamar de alfabetismo matemático.

Quando queremos nos referir às práticas sociais mais amplas que envolvem essas representações, ideias e procedimentos (associados à quantificação, à metrificação, à ordenação, à classificação, a modos de apreciar e organizar as formas e os espaços etc.), discutindo condições, possibilidades e interdições que nelas se engendram, falamos, então, em numeramento. Entretanto, essa forte marca dos modos de lidar com representações, ideias e procedimentos matemáticos nos textos nos faz considerar que eles também compõem a cultura grafocêntrica de nossa sociedade e, por isso, costumamos dizer que o numeramento (em sociedades grafocêntricas) se comporta como uma dimensão do letramento, ou seja, as práticas de numeramento são práticas de letramento que mobilizam essas representações e/ou essas ideias e/ou esses procedimentos.

Portanto, podemos dizer que o Inaf, ao avaliar habilidades elementares de alfabetização e, principalmente, habilidades complexas de alfabetismo, inevitavelmente o leva a avaliar também habilidades elementares de alfabetização matemática e habilidades complexas de alfabetismo matemático. Ao permitir relacionar o domínio e o uso dessas habilidades com um farto conjunto de informações sobre a situação socioeconômica, geográfica, profissional, etária, de gênero, étnico-cultural e educacional de diferentes grupos, o Inaf subsidia também análises sobre possibilidades, restrições e relativizações da participação desses grupos em práticas de letramento (entre elas, as de numeramento) socialmente valorizadas e a elaboração de modos de viabilização, incremento e democratização dessa participação.

 

Referências Bibliográficas

FONSECA, Maria C. F. R. Práticas de Numeramento na EJA. In: CATELLI JR., Roberto (Org.). Formação e Práticas na Educação de Jovens e Adultos. São Paulo: Ação Educativa, 2017, p. 105-115.

RIBEIRO, Vera M. Alfabetismo e atitudes: pesquisa junto a jovens e adultos. Campinas: Ação Educativa/Papirus, 1998.

RIBEIRO, Vera M; FONSECA, Maria C. F. R. Desenvolvimentos metodológicos do INAF. In: RIBEIRO, V. M. (Org). Alfabetismo e letramento no Brasil: 10 anos do INAF. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

ROJO, Roxane H. R.. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. 1ª. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

Conheça o Inaf

O Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) é um estudo de alcance nacional, realizado desde 2001, que estima os níveis de alfabetismo funcional da população e investiga seus determinantes. Parceria entre o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa, a iniciativa é coordenada pela Conhecimento Social. O levantamento é feito por meio de entrevista pessoal e teste cognitivo aplicado a uma amostra representativa da demografia e da diversidade socioeconômica e geográfica da população brasileira que está entre 15 a 64 anos.

De acordo com o Inaf, o indivíduo é funcionalmente alfabetizado quando apresenta um determinado grau de proficiência em letramento e numeramento. O letramento é a habilidade de ler e escrever diferentes gêneros, em diferentes suportes e formatos, com coerência e compreensão crítica. O numeramento é a habilidade de construir raciocínios e aplicar conceitos numéricos simples, ou seja, usar a matemática para atender às demandas do cotidiano. É por meio dessas capacidades que o indivíduo terá plenas condições de participar ativamente da sociedade em seus mais diversos âmbitos.

Os resultados do Inaf localizam a população pesquisada em cinco níveis de alfabetismo. Nos dois primeiros – analfabeto e rudimentar – agrupam-se os chamados analfabetos funcionais. Nos três níveis seguintes – elementar, intermediário e proficiente – concentram-se os indivíduos considerados alfabetizados funcionalmente.

Quem Somos Nossa Metodologia

Opiniões e perspectivas relacionadas