Opiniões e perspectivas

Alfabetismo e mundo do trabalho no Brasil

Publicado: 03/03/2020
Roberto Catelli Jr.

O mundo do trabalho é um dos espaços possíveis de desenvolvimento de práticas de letramento e de numeramento, afetando diretamente as condições de alfabetismo de determinados segmentos populacionais inseridos nos mais diferentes campos profissionais e de trabalho. Por isso, o Índice de Alafabetismo Funcional (Inaf), desde a edição de 2015, indaga em que medida as pessoas jovens e adultas trabalhadoras tendem a vivenciar práticas de letramento e de numeramento ao realizar determinadas atividades laborais e quais dessas práticas seriam mais ou menos presentes em determinadas funções, atividades e ocupações.

Estudos internacionais, como o Internarional Adult Literacy Survey (Ials) e o recente Programme for the International Assessment of Adult Competencies (Piaac), ambos desenvolvidos pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostraram que, em alguns países, havia um número significativo de pessoas que, apesar da pouca escolarização, apresentavam bom desempenho em indicadores de alfabetismo, enquanto que, em outros, era pouco representativa a quantidade de pessoas com baixa escolaridade que alcançaram os níveis mais altos de alfabetismo. Essa situação permitiu sugerir a existência de diferentes agências do alfabetismo que, para além da escola, podem contribuir de maneira significativa no desenvolvimento das habilidades de leitura, escrita e resolução de problemas, complementando assim os efeitos da escolarização (OECD, 2000, p. XIV).

Outros estudos também haviam indicado a necessidade de aprofundar as relações entre alfabetismo e mundo do trabalho. Em 2009, a Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro, em imersão nas discussões sobre alfabetismo juvenil de jovens de 15 a 24 anos residentes nas nove principais regiões metropolitanas do país [1], mostraram que quase metade dos jovens nessa condição trabalhava e que havia uma clara relação entre condição de alfabetismo e ocupação no mercado de trabalho. Enquanto os de nível pleno concentravam-se nos setores de serviços de transporte, comunicação, saúde e educação, os de nível básico atuavam prioritariamente no comércio, sendo que os jovens analfabetos funcionais estavam concentrados na agricultura, na construção e nos serviços domésticos.

Muitos jovens estavam em trabalhos e ocupações com baixa remuneração e com restritas demandas de leitura, escrita e resolução de problemas (com enfoque em habilidades matemáticas), conformando um cenário comum aos jovens não somente no âmbito do trabalho, mas também na esfera do lazer e da escola. Nesse estudo, assim como em pesquisa de Ribeiro (1999), constatou-se que o trabalho era um importante preditor da condição de alfabetismo de uma determinada população.

Na edição de 2018 do Inaf, verificamos que, dentre os indivíduos que ocupavam cargos de assistente, operador ou auxiliar em diferentes setores da economia, 20% foram classificados no grupo de analfabetos funcionais e apenas 14% foram incluídos no nível proficiente. Cerca de 30% dos que ocupavam cargos mais elevados, como coordenação, gerência e também técnicos, analistas e especialistas, atingiram o nível proficiente, sendo que 39% situavam-se no nível intermediário.

Dentre os que trabalhavam em serviços domésticos, 56% eram analfabetos funcionais, ocorrendo o mesmo com 40% dos pequenos produtores rurais e 37% dos que trabalhavam por conta própria. Podemos considerar que esses grupos apresentam também menor escolaridade, menor renda e, portanto, têm menos acesso à cultura letrada. Mas, para além disso, sua condição de baixo nível de alfabetismo se acentua por realizarem atividades profissionais que pouco exigem deles em termos de letramento.

No caso dos trabalhadores domésticos, dos quais 97% são mulheres, 39% não ultrapassaram as séries iniciais do Ensino Fundamental, 34% têm 50 anos ou mais, 64% são negras e 40% têm renda de até 1 salário mínimo. Ou seja, trata-se de um grupo que reúne vários elementos de exclusão social, incluindo raça, baixa escolaridade e renda.

A força da leitura

Quando perguntados sobre o tipo de leitura que realizam, 55% afirmaram ler livros religiosos, incluindo a bíblia. Outros 46% responderam ler jornais e 41% disseram ler revistas. Textos relacionados ao trabalho foram mencionados por 39%, sendo que os mais jovens (55%) afirmaram realizar leituras no trabalho, enquanto apenas 23% daqueles que possuem 50 anos ou mais disseram realizar esse tipo de leitura. Há diferenças significativas relacionadas à escolaridade e ao nível de alfabetismo, pois a leitura no trabalho está presente para 75% dos que estão no nível superior e apenas para 15% dentre aqueles sem nenhuma escolaridade ou com até as séries iniciais do Ensino Fundamental. O mesmo ocorre em relação ao nível de alfabetismo: 68% dos proficientes afirmaram realizar leituras no trabalho; essa porcentagem cai para 27% quando se trata de analfabetos funcionais .

Deve-se mencionar também o tipo de leitura realizada. Apenas 13% dos analfabetos funcionais usam calculadora no trabalho e 6% utilizam o computador, enquanto 26% fazem uso do celular. Quanto mais aumenta o nível de alfabetismo, maior o emprego da calculadora, que chega a 61% entre os proficientes, e do computador, que vai a 34%. O telefone celular é utilizado por 19% dos analfabetos funcionais para enviar mensagens de texto ou áudio. Esse percentual cresce conforme se amplia o alfabetismo, chegando a 61% entre os que estão no nível proficiente. Apenas 10% dos analfabetos funcionais consultam sites para verificar preços ou procurar produtos, sendo essa atividade realizada por 37% dos que estão no nível intermediário e por 38% dos proficientes.

Entre os analfabetos funcionais, está mais presente a leitura de placas e símbolos de orientação (20%), seguida das comunicações internas expostas em murais e televisores (15%). O e-mail é utilizado apenas por 7% dos que integram esse grupo. Tabelas e gráficos são lidos somente por 5% dos entrevistados.

Quanto mais alto o nível de alfabetismo, fica evidente a ampliação do uso da leitura no trabalho, sendo que 61% dos que estão no nível Proficiente leem e escrevem e-mail, 63% fazem uso de agenda e calendário e 60% de materiais escritos produzidos por colegas. No entanto, como mostra o gráfico a seguir, mesmo entre os proficientes, algumas formas de leitura não são utilizadas por mais do que aproximadamente um terço do grupo.

Conclusivamente, pode-se afirmar que, considerando as características do mercado de trabalho brasileiro, historicamente marcado por uma divisão entre trabalho manual e intelectual, com uma enorme diferença salarial entre esses dois grupos, o mundo do trabalho parece contribuir muito pouco para que, especialmente nos grupos de mais baixo nível de alfabetismo, seja possível avançar tendo em conta a vivência nesse setor. O estudo mostra que, dentre os analfabetos funcionais, 63% não leem nada no trabalho, o mesmo ocorrendo com 29% dos que estão no nível elementar – que, apesar do maior uso, fazem-no com uma função limitada. Com isso, a leitura continua sendo reservada aos mais proficientes, sem que sejam criadas estratégias para que os analfabetos funcionais acessem o universo da cultura letrada. Ou seja, o mundo do trabalho, no Brasil, apenas reproduz as diferenças sociais estabelecidas pela desigualdade de renda e nível educacional, havendo pequenos sinais de avanço, uma vez que a própria realidade de mercado exige cada vez maior nível de alfabetismo. Esse é o caso do uso do telefone celular para envio de mensagens, usado por 26% dos analfabetos funcionais e por 38% dos proficientes.

 

[1] Ao total, foram entrevistados 1.008 jovens das seguintes regiões metropolitanas: Salvador, Fortaleza, Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e Brasília.

 

Conheça o Inaf

O Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) é um estudo de alcance nacional, realizado desde 2001, que estima os níveis de alfabetismo funcional da população e investiga seus determinantes. Parceria entre o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa, a iniciativa é coordenada pela Conhecimento Social. O levantamento é feito por meio de entrevista pessoal e teste cognitivo aplicado a uma amostra representativa da demografia e da diversidade socioeconômica e geográfica da população brasileira que está entre 15 a 64 anos.

De acordo com o Inaf, o indivíduo é funcionalmente alfabetizado quando apresenta um determinado grau de proficiência em letramento e numeramento. O letramento é a habilidade de ler e escrever diferentes gêneros, em diferentes suportes e formatos, com coerência e compreensão crítica. O numeramento é a habilidade de construir raciocínios e aplicar conceitos numéricos simples, ou seja, usar a matemática para atender às demandas do cotidiano. É por meio dessas capacidades que o indivíduo terá plenas condições de participar ativamente da sociedade em seus mais diversos âmbitos.

Os resultados do Inaf localizam a população pesquisada em cinco níveis de alfabetismo. Nos dois primeiros – analfabeto e rudimentar – agrupam-se os chamados analfabetos funcionais. Nos três níveis seguintes – elementar, intermediário e proficiente – concentram-se os indivíduos considerados alfabetizados funcionalmente.

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