Transcrição do podcast
Ricardo Falzetta
Olá, eu sou Ricardo Falzetta.
Paola Gentile
Eu sou Paola Gentile.
Ricardo Falzetta
E este é o Podcast do Inaf.
Paola Gentile
Hoje vamos falar de História e contar como surgiu e como evoluiu ao longo de duas décadas o Inaf, um dos mais importantes indicadores educacionais que mede o nível de alfabetismo funcional no Brasil desde 2001.
Ricardo Falzetta
Inaf é a sigla de Indicador de Alfabetismo Funcional. Mas o que significa alfabetismo funcional? Como surgiu esse conceito?
Matheus, estudante
Eu acho, alfabetismo, tipo, as pessoas saberem ler, escrever, aprender, ensinar.
Renato, encarregado de açougue
Alfabetismo seria algo sobre alfabeto, tipo quem sabe ler, escrever… Penso eu, no meu modo de pensar.
Átila, bancário
Um alfabetismo mais prático, mais rápido?
Isa, doméstica
Alfabetismo funcional é o que, é a pessoa que não sabe ler. É isso. A pessoa que não sabe ler, praticamente, quando eu vim para São Paulo eu não sabia nem meu nome. Quer dizer que, quando eu vim para São Paulo, eu não sabia nem pegar o ônibus. Mas depois que eu estudei, eu leio ônibus, eu vou no mercado, eu faço compras, eu vou em qualquer lugar quando eu quero, de ônibus, volto. Sei o lugar que estou, o lugar que eu entro e o lugar que eu saio [risos].
Jacó, jardineiro
Vejo falar, mas… É do mesmo que jeito que sou eu. É ruim, porque o cara é analfabeto [risos].
Paola Gentile
O Indicador de Alfabetismo Funcional retrata os diversos níveis de letramento e de numeramento da população brasileira que tem entre 15 e 64 anos. Ou seja, ele mostra o quanto e com que qualidade as pessoas estão conseguindo se comunicar pela linguagem escrita e numérica nos diversos contextos sociais do nosso dia a dia. Aí você deve estar se perguntando: “Mas não basta saber ler e escrever para uma pessoa ser considerada alfabetizada?” Não é bem assim…
Ricardo Falzetta
O índice de alfabetização da população brasileira começou a ser medido em 1872, quando aconteceu o primeiro censo demográfico, ainda no Império. O Brasil tinha na época cerca de 10 milhões de habitantes. De acordo com o recenseamento, 85% eram pessoas livres e 15%, escravizadas.
Paola Gentile
Mas esse número de pessoas livres escondia a condição dos chamados escravos libertos que, apesar de terem sido alforriados, ainda seguiam servindo seus senhores numa certa escravidão informal. O censo de 1872 também registrou que, dos homens e mulheres livres, 77% eram analfabetos; das mulheres e dos homens escravizados, 99% não sabiam ler nem escrever.
Ricardo Falzetta
Nessa época, o entrevistado apenas respondia à pergunta se ele sabia ou não sabia ler e escrever. Isto é, ele se auto-declarava alfabetizado ou analfabeto. Esse critério durou até 1940. Depois disso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, que até hoje realiza o censo demográfico, seguiu orientações da Unesco e passou a adotar questões sobre o nível de escolaridade da população. E até hoje é assim: os entrevistados continuam auto-declarando se sabem ou não sabem ler e escrever.
Paola Gentile
Quem conta melhor essa história para a gente é Vera Masagão, presidente da ONG Ação Educativa, uma das idealizadoras do Inaf.
Vera Masagão
Se começou também a usar por uma aproximação, e foi isso que a Unesco sugeriu para os censos nacionais. Era considerar alfabetizado quem tinha a 4ª série. Mas ainda não era uma medida precisa, porque 4ª série pode ser diferentes coisas nos países, e 4ª série, há 30 anos, há 50 anos, era diferente de uma 4ª série hoje. Numa época em que a escola era muito mais seletiva, pessoas que chegavam até a 4ª série eram até relativamente pessoas bem instruídas, lógico que num nível básico. Mas a maioria não chegava sequer na 4ª série. Hoje em dia, ter 4ª série significa… Todo mundo, praticamente todas as crianças têm acesso à Educação até a 4ª série primária, mas isso não significa os mesmos aprendizados que se obtinham há muito mais tempo, porque quem chegava era uma população mais seletiva. E as oportunidades de trabalho são diferentes. As exigências escolares, para você pegar um emprego mais qualificado, são muito maiores. Hoje, uma pessoa com 4ª série não consegue um emprego qualificado, portanto não encontra oportunidade de seguir desenvolvendo essas habilidades.
Ricardo Falzetta
Diante das novas realidades da educação e das exigências do mercado de trabalho, estava mais do que na hora de conhecer o nível real de alfabetismo dos brasileiros.
Paola Gentile
Formada em Letras, Vera Masagão já trabalhava com Educação de Jovens e Adultos e pesquisava sobre o tema.
Vera Masagão
Então surgiu a oportunidade de uma aliança com pesquisadores da Unicamp, como a Ivani Pino e a Vanilda Paiva, uma pesquisadora de nome na época nesse campo, que acabou nos conectando com um grupo que estava sendo coordenado pela Unesco no Chile, que estava desenvolvendo pesquisa sobre alfabetismo, que é um termo que não se usava muito no Brasil mas, no campo de educação de adultos internacionalmente sempre se usou – o termo literacy. É um termo que sempre se usou para esse campo da educação de adultos. É até diferente, não se usa esse termo para a educação infantil de crianças ou na alfabetização – é reading and writing. Para adultos, o termo literacy significava dominar o uso prático da leitura e da escrita. Menos a aprendizagem acadêmica e mais o uso da leitura e da escrita no dia a dia. Então, a ideia era fazer uma medição de habilidades de leitura e escrita e de cálculos básicos associados também à cultura escrita, em contextos práticos de uso. Já estavam sendo feitos, por meio da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), estudos nos países desenvolvidos, sócios da OCDE. Isabel Infante liderava, uma pesquisadora chilena, pela Unesco, na intenção de criar um modelo, um estudo para a América Latina, que estivesse mais próximo da nossa realidade.
Ricardo Falzetta
Já contemplava a questão do número…
Vera Masagão
Sim, já. Esse já era um conceito que estava bem… Enfim, desde a década de 1970 já tinha esse conceito de literacy… Tem alguns que separam numeracy como uma dimensão da literacy, que é um pouco o que o Inaf acabou fazendo também, mas sempre trabalhando com essa noção que é, dentro do universo escrito, dos símbolos escritos, como eles se colocam na prática, os usos que se faz deles no dia a dia. Nós acabamos realizando essa pesquisa no Brasil, desenvolvemos conjuntamente os instrumentos com essa equipe coordenada pela Unesco… Pela Orealc (Oficina Regional de Educação para América Latina e Caribe), na verdade. É um órgão da Unesco, no Chile. Essa pesquisa aconteceu e se realizou, e a ideia era poder prosseguir, mas houve mudanças e a gente nunca conseguiu dar seguimento, fazer outras ondas de estudo para acompanhar.
Ricardo Falzetta
No Brasil, o conceito de alfabetismo funcional começou a ter destaque quando surgiu o Inaf. A economista Ana Lima, que era gestora do Ibope Mídia em 2001 e hoje é diretora do Instituto Paulo Montenegro e sócia-proprietária da Conhecimento Social, participou desde a concepção do novo indicador e contou pra gente essa história.
Ana Lúcia Lima
Quando o Fábio Montenegro passou a dirigir o Instituto Paulo Montenegro… O Fábio era da família Montenegro, mas ele veio como um consultor para ajudar a montar. Não iria ficar, ele trabalhava noutra coisa, mas ele fez um diagnóstico muito legal de que o Ibope nunca seria um grande investidor financeiro, dado o recurso que, enfim, o tamanho da empresa, que estava disponível a colocar, mas que esse patrimônio do know-how em pesquisa seria um acréscimo de doação talvez até maior do que a gente tinha de disponibilidade para investir do ponto de vista financeiro. Quisemos desenhar, desde logo, um estudo que tivesse a ver com Educação e que usasse esse expertise estatístico de colocar uma pesquisa em campo, em nível nacional, sobre um tema que fosse relevante para a Educação. Fábio procurou na época a Vera Masagão e, juntos, fizeram esse diagnóstico de que o Brasil estava já bem munido de pesquisas que mediam habilidades e competências no contexto escolar – porque já tinham alguns anos de Saebs, Provas Brasil, Enems e etc. – mas que era muito carente em termos de pesquisa sobre quem não está na escola. Isso vale tanto para a população que tem idade escolar, mas não está cursando, ou está cursando até, mas fora de faixa, fora de fluxo, e para o adulto escolarizado em etapas anteriores da vida, mas que está aí, na vida, exposto aos desafios de uma sociedade que é letrada e que demanda das pessoas as habilidades de leitura e escrita o tempo todo. Então essa foi uma ótima combinação de expertises, da Ação Educativa, na pessoa da Vera, então trazendo a conceituação – o que é que se quer medir, o que é o letramento, o que é o alfabetismo funcional, como a gente quer caracterizar isso – e o Ibope, que foi capaz de transformar isso num desenho metodológico de implementação de pesquisa em campo.
Eu lembro da conversa que era “Não vamos chamar isso de analfabetismo funcional e sim de alfabetismo”. Mas ele nasceu com esse “N” de nacional. Era o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional. Com o tempo a gente se arrependeu… Se arrependeu, não, mas, enfim, a gente matou o “N” do nacional, porque hoje a gente aplica o Inaf em diferentes circunstâncias. Pode aplicar a um município, a um estado, a uma empresa. Enfim, então esse “nacional” deixou de fazer sentido e virou um apêndice do “in” de “índice”. A gente não chama mais de indicador nacional e sim de indicador de alfabetismo.
Ricardo Falzetta
Nesse percurso, muita coisa mudou. O Inaf era medido anualmente até 2005. Depois passou a ser apurado de dois em dois anos. Deverá continuar a série com a pesquisa sendo feita de três em três anos.
Paola Gentile
Até a pesquisa de 2011, eram quatro os níveis de alfabetismo: o analfabeto e o rudimentar, considerados analfabetos funcionais, e o básico e o pleno, nível em que estão aqueles que são considerados funcionalmente alfabetizados.
Ricardo Falzetta
Na pesquisa de 2015, o nível dos funcionalmente alfabetizados foi subdividido em três: no lugar do básico e do pleno entraram os níveis elementar, intermediário e proficiente, somando ao todo cinco níveis.
Paola Gentile
Nas últimas edições também foram sendo incorporadas perguntas sobre temas como o uso das tecnologias digitais, conhecimentos financeiros e o mundo do trabalho, que permitem fazer análises bem interessantes ao cruzar os dados do alfabetismo com esses recortes temáticos.
Ricardo Falzetta
Há informações também sobre a população negra, o universo feminino e as juventudes.
Paola Gentile
O fato principal é que os últimos dados, de 2018, mostram que ainda existem 30 por cento de analfabetos funcionais no Brasil – o que representa cerca de 43 milhões e 400 mil pessoas. Ana Lima faz um balanço:
Ana Lúcia Lima
Esses quase vinte anos e as dez medidas tornam a narrativa muito mais valiosa do que os pontos isolados. Porque você está vendo o filme e esse filme ressoa com muito credibilidade na percepção que se tem do fenômeno. Ou seja, a gente está, de fato, ao ampliar o acesso, reduzindo a proporção de analfabetos absolutos, isso é bastante claro. Eles hoje se restringem quase que a um grupo de pessoas mais velhas, baixa proporção de analfabetos absolutos nos jovens e isso fruto das políticas de acesso à escolaridade. E isso é muito bom. A gente fez uma conta outro dia, que o Brasil tem hoje 14 milhões de analfabetos a menos do que teria se não fosse esse processo de alfabetização. São 14 milhões de pessoas, que equivalem a quase uma Argentina, ou três Bélgicas… de analfabetos funcionais que saíram dessa condição e hoje estão numa condição muito mais adequada de viver da maneira plena os seus direitos, a sua busca por qualquer coisa que queiram. Legal, bacana. Por outro lado, o que a gente vai vendo é que, desde o primeiro Inaf, uma parcela de 12%, que variou de 12, 10, 11, 10, 12… a mesma, desde o primeiro Inaf, ou seja, nesses últimos 20 anos, só esta parcela chega ao nível Proficiente. E quando você vai ver o perfil dessas pessoas, são as pessoas de maior renda, tendencialmente brancas, e elas têm pais escolarizados, com maior escolaridade. Então, a gente, apesar de ter feito essa inclusão sensacional – demos oportunidade de as pessoas saírem do muito frágil para o mais ou menos –, mas a oportunidade de sair do mais ou menos para o bom ainda é restrita a uma camada pequena da sociedade brasileira. Isso é uma coisa que precisa ser quebrada.
Ricardo Falzetta
Vera Masagão comenta sobre o que é necessário fazer para o país sair dessa situação.
Vera Masagão
Bom a Educação, não tem por onde. Isso em todos os estudos, em todos os países. Não tem… É o principal fator, de longe, isolado, que determina. Porque é um treinamento diário etc… E aí, lógico que, com isso, o que a gente espera é mais oportunidade de uma inserção criativa na sociedade, mais acesso a empregos qualificados, mais acesso à cultura de forma geral, e à comunicação e à informação.
Paola Gentile
A Educação de Jovens e Adultos, que papel você acha que ela tem?
Vera Masagão
Então, eu acho ela fundamental. É um conceito que, também aqui no Brasil ainda está muito ligado a uma recuperação de uma escolaridade perdida na infância. Mas que é um conceito muito forte nos países que a gente está citando como bons exemplos de níveis de alfabetismo da população, os países nórdicos, que têm a alfabetização de adultos como prática disseminada, que não é mais para aprender habilidades básicas, mas é para acessar algum campo de conhecimento novo. Em algum momento teve sentido as populações mais adultas se apropriarem das ferramentas eletrônicas, de comunicação. Ou, simplesmente aprender filosofia, aprender coisas novas na sua vida. Quer dizer, cada vez mais a sociedade que a gente vive entende que essa capacidade de aprender ao longo da vida é fundamental para requalificação profissional. O sistema produtivo tem evoluído no sentido de que não adianta aprender um ofício lá quando você tem 15 anos e que ele vai se reproduzir para o resto da sua vida e que você vai continuar, sei lá, um sapateiro, até quando você se aposentar, sempre com o mesmo conhecimento, que você vai aplicando. Cada vez mais hoje vão surgindo novas técnicas, novas formas de fazer, novos desafios. Então, a EJA também é um conceito que não se extingue. A gente até criticava, tinha gente que falava “ah, espero que um dia a educação de adultos não seja mais necessária no Brasil”. No conceito antigo, de reposição de uma escolaridade obrigatória que foi negada a esse sujeito, sim. Mas a Educação de Adultos, como é fomentada em países que não têm esses problemas de deseducação, de falta de educação básica para a população, nós precisamos chegar lá, precisamos ter ainda que as pessoas adultas reconheçam que têm que continuar aprendendo. E os empregos mais nobres, do ponto de vista das habilidades intelectuais que exigem… Por exemplo, a carreira acadêmica, você estuda o resto da vida, a pessoa tem que aprender o resto da vida. Não tem isso “aprendi, acabou”. E quanto mais sofisticados forem os dados, as informações com que as pessoas lidam no mundo do trabalho, as relações interpessoais cada vez mais sendo exigidas, cada vez mais as pessoas precisam estar dispostas a abrir a cabeça, a aprender pelo resto da vida.
Paola Gentile
Roberto Catelli, pesquisador e atual diretor executivo da Ação Educativa, defende que há vários caminhos a serem percorridos para acabar com o analfabetismo funcional:
Roberto Catelli Jr.
Acho que ter escolas de educação é importante. Mas isso é evidente que, um modelo de escola convencional, com quatro horas de aula por dia, no período noturno, isso vai ser possível para um grupo, mas não para tantos brasileiros, como é a nossa demanda hoje. Então eu acho que a gente deveria ter uma política muito mais ousada. Primeiro, ter diferentes modelos. Por exemplo, em São Paulo existe uma escola de adultos chamada Cieja, que tem uma escola de 2 horas e 15 minutos por dia e tem cinco horários, desde de manhã até de noite. Então, essa tem muito mais procura hoje do que tem a escola convencional, porque ela pode atender pessoas em diferentes horários e num horário mais flexível, que cabe da vida da pessoa. São 2 horas e 15 e não 4 horas de aula. Acho que também tem outras possibilidades. Os exames de certificação devem existir para aquelas pessoas que, mesmo não tendo estudado, avançaram muito. É um grupo pequeno, mas conseguiram avançar bastante. Então podem fazer uma prova e seguir adiante. Por conta própria, pelo seu trabalho, pela sua vida, pelo seu interesse pessoal, gostavam de ler, tinham um trabalho em que faziam muitas contas, ler jornal, enfim, gente que consegue avançar muito mais. Além disso, você poderia ter ainda outros modelos. Modelos que, por exemplo, em que a pessoa faz uma disciplina num período, depois faz outra, vai fazendo aos poucos. Ou até iniciativas menos formais. Pessoas que podem ter uma instituição, uma ONG, uma ação comunitária, que possa promover espaços de leitura, de estudo, e que essa pessoa de alguma maneira possa avançar. Quero dizer com isso que é [preciso] criar ferramentas para que essas pessoas possam ampliar o seu capital cultural, por exemplo. As periferias e muitas cidades brasileiras não têm equipamento cultural. Pega a cidade de São Paulo. Fala-se que é uma cidade super recheada de oferta cultural. Pega um mapa da cidade de São Paulo. Uns dez anos atrás foi feito um mapa super bacana dessa distribuição dos equipamentos culturais em São Paulo, iluminando as áreas. Tá tudo concentrado aqui, na região da avenida Paulista, na Vila Mariana, no Centro… Nos bairros periféricos de São Paulo não tem nada. Não tem biblioteca, cinema, teatro. Muitas vezes não tem nenhuma atividade cultural, exceto aquelas que vêm surgindo nos últimos anos, que são produzidas pelas próprias periferias, como o que hoje nós chamamos de uma cultura de periferia. Isso é uma complicação e tanto, porque as pessoas não têm dinheiro para se deslocar. Eu sou coordenador de um curso noturno de adultos e os meus alunos têm dinheiro para ir para a escola. Muito menos para pegar o final de semana e falar assim “vou sair de Guaianazes e vou me divertir na avenida Paulista”. Não tem dinheiro para trabalhar, na segunda-feira.
Ricardo Falzetta
Mas não é somente a escola que pode ajudar a reverter essa situação. O mundo do trabalho também poderia fazer a sua parte.
Paola Gentile
O senhor costuma ler em casa?
Ramiro, metalúrgico
Ah, costumo, costumo.
Paola Gentile
Que tipo de texto o senhor costuma ler?
Ramiro, metalúrgico
Ah, leitura tem variada, né.
Paola Gentile
Por exemplo…
Ramiro, metalúrgico
Mais é revista, essas coisas assim, né…
Paola Gentile
Jornal…
Ramiro, metalúrgico
Isso, isso…
Paola Gentile
Livros, o senhor lê?
Ramiro, metalúrgico
Leio, mas pouco, menos frequência, sabe.
Paola Gentile
Para o senhor fazer seu trabalho, precisa ler algum tipo de texto?
Ramiro, metalúrgico
Não, não, não, não…
Paola Gentile
Para executar seu trabalho de eletricista, o senhor precisa ler algum tipo de texto?
Edivaldo, eletricista
Precisa não.
Paola Gentile
O seu trabalho, hoje, exige que você leia algum tipo de texto?
Renato, encarregado de açougue
Não, não tanto. Escrever, no caso, pra fazer os pedidos, essas coisas assim…
Roberto Catelli Jr.
A gente tem uma lógica muito segregada do mercado de trabalho, uma divisão muito clara de trabalho manual e trabalho intelectual. Então, as pessoas que não estão, aqui como nós, que trabalhamos com a leitura e com a escrita, que usam e-mail, que se comunicam no seu trabalho, elas em geral não têm nenhum uso da leitura e da escrita ou da própria matemática nas suas tarefas de trabalho. Então, o trabalho, ele é um espaço de não letramento. A gente acha que a gente aprende no trabalho. A gente aprende, mas boa parte dos brasileiros não aprende nada no seu trabalho do ponto de vista do uso da leitura e da escrita e da própria matemática. Nem ler um manual, muitas vezes. Porque é muito oral a cultura, “fulano faz isso, fulano faça isso”. É na base da ordem oral. Não tem uma coisa “leia isso para a gente fazer aquele trabalho”.
Paola Gentile
E os próprios treinamentos, eles são também baseados na oralidade. Vai ouvir uma palestra, vai fazer um curso presencial que a pessoa passa as instruções e acaba não demandando a leitura.
Roberto Catelli Jr.
Exatamente, a leitura não é um meio para as pessoas consideradas de baixa renda e mais baixa escolaridade no Brasil.
Ricardo Falzetta
Mas você acha que isso daria para mudar na relação dos gestores com seus empregados ou seria uma mudança até na natureza do trabalho?
Roberto Catelli Jr.
Acho que ela poderia até ser gradual. Por exemplo, algumas coisas. Algumas orientações que podem ser usadas como cartazes, em vez de só contar com a memória. Algumas reuniões em que exista um material de leitura, por mais simples que ele seja. Por exemplo, ter um e-mail no trabalho. A maior parte dos brasileiros não usa e-mail no trabalho. É um grupo muito reduzido que usa. Enfim, é constituir uma cultura em que a leitura e a escrita façam parte das práticas sociais do campo do mundo do trabalho. Só que elas fazem pouco no Brasil ainda. O que a gente tem no Inaf visto é isso, elas são muito marginais ainda.
Paola Gentile
O caminho ainda é longo. No site do Inaf, lançado em 2020, é possível consultar toda a série histórica e ainda ler análises e debates sobre o tema. Ana Lima comenta os próximos passos.
Ana Lúcia Lima
Olhando para trás, eu acho que a gente pode ficar muito orgulhoso, feliz de ter conseguido que esse indicador de fato ocupasse o espaço político que ele ocupa. A gente conseguiu trazer o tema para a agenda, fortalecer o debate, qualificar a compreensão. Mas acho que a gente não conseguiu induzir a ação. E onde está o problema? Grande parte pode se atribuir a isso: é que o Inaf, por ser uma pesquisa amostral do tamanho que ela é ou do tamanho do fôlego que esse investidor social privado conseguiu fazer, não tem granularidade no território. Então, eu não sei qual é o Inaf de um estado, qual é o Inaf de um município. O que está na mão de o gestor intervir, se ele pudesse fazer um diagnóstico mais localizado, mais territorial, da condição de letramento do seu município ou, ainda que fosse, do seu estado, ou dos jovens que saíram do Ensino Médio da escola pública da rede X, alguma coisa que estivesse na sua mão para atuar, acho que a gente teria tido mais incidência em ação, mesmo. Para além de mudar a atitude, conscientizar, qualificar e etc. Só que esse Brasilzão, desse tamanho, é impossível, para um recurso privado cobrir nesse nível de granularidade. Então, que tipo de mecanismo, que tipo de parceria, que tipo de solução poderia haver, para aproximar essa medida de espaços territoriais onde a autoridade pública tenha uma intervenção que ela possa de fato desenhar? Chamo de autoridade pública, mas pode até ser uma empresa e o seu entorno, enfim, mas que você aproximasse isso em um tamanho que pudesse dizer “entendi o meu problema e vou atuar neste problema”. Isso a gente conseguiu fazer muito pontualmente, só. Está aí uma frustração, está aí um convite, mesmo, à sociedade brasileira, seja o mundo público ou o mundo privado, de ajudar a pensar como é que a gente poderia aterrissar melhor esse indicador para ele induzir melhor a uma ação. A gente está com alguns desafios interessantes agora. Então, um grande desafio para encarar é esse de digitalização do teste do Inaf. É um belo desafio para o ano que vem [2020]. E estamos sendo convidado a baixar a matriz do Inaf para crianças e adolescentes em idade escolar. Hoje, o Inaf está desenhado para medir competências, nem tanto competências escolares, mas competências de maturidade de uma pessoa acima dos 15 [anos] ou, melhor ainda, mais adulta até. Tipo de coisa que dá para o cara ler, não só pela habilidade de leitura, mas o contexto. São temas de um adulto, não são temas de uma criança. E a gente está sendo convidado por dois parceiros a adequar essa concepção que guia o Inaf, para que ela possa ser aplicada também para crianças em idade de Ensino Fundamental. Não na escola, mas em crianças que estão cursando o Ensino Fundamental. É um belo de um desafio, bacana, está em curso, já está dando certo, mas também traz uma sobrevida, uma nova vida para o Inaf, na realidade. A gente nem vai chamar de Inaf, porque não faz sentido chamar uma criança de analfabeta funcional. Terá um novo nome mas, no fundo, é uma escala contínua de habilidades. Então eu consigo fazer a conexão entre o que a gente mede no adulto e o que a gente poderia medir, de ver essas habilidade começando a se consolidar já nas crianças. E a gente está muito animado com isso.
Ricardo Falzetta
Para saber mais sobre alfabetismo funcional, navegue no site e acesse as tabelas e os gráficos de todas as medições.
Paola Gentile
O Podcast do Inaf é produzido pela RFPG Comunicação.
Ricardo Falzetta
Roteiro e apresentação, Paola Gentile e Ricardo Falzetta.
Paola Gentile
Edição e mixagem, Marcos Azambuja e Ganzah Produtora de Áudio.
Conheça o Inaf
O Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) é um estudo de alcance nacional, realizado desde 2001, que estima os níveis de alfabetismo funcional da população e investiga seus determinantes. Parceria entre o Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa, a iniciativa é coordenada pela Conhecimento Social. O levantamento é feito por meio de entrevista pessoal e teste cognitivo aplicado a uma amostra representativa da demografia e da diversidade socioeconômica e geográfica da população brasileira que está entre 15 a 64 anos.
De acordo com o Inaf, o indivíduo é funcionalmente alfabetizado quando apresenta um determinado grau de proficiência em letramento e numeramento. O letramento é a habilidade de ler e escrever diferentes gêneros, em diferentes suportes e formatos, com coerência e compreensão crítica. O numeramento é a habilidade de construir raciocínios e aplicar conceitos numéricos simples, ou seja, usar a matemática para atender às demandas do cotidiano. É por meio dessas capacidades que o indivíduo terá plenas condições de participar ativamente da sociedade em seus mais diversos âmbitos.
Os resultados do Inaf localizam a população pesquisada em cinco níveis de alfabetismo. Nos dois primeiros – analfabeto e rudimentar – agrupam-se os chamados analfabetos funcionais. Nos três níveis seguintes – elementar, intermediário e proficiente – concentram-se os indivíduos considerados alfabetizados funcionalmente.